Colo de mãe

“O segredo do amor é maior do que o segredo da morte.”

Oscar Wilde

Ela já era muito grave, desde o nascimento. Por volta de 2 meses de vida, nunca havia saído da UTI. A mãe, ali do lado, quase não desgrudava dela, quase nunca a deixava sem um afago, e em nenhuma circunstância deixou de enxergá-la como o doce bebê com quem sonhara por tanto tempo, apesar do aspecto inchado, muito inchado, de quem já passou por tantas infecções, cirurgia cardíaca e procedimentos variados.

Já fazia tempo que não via os olhos da filha abertos, tampouco o fechar das mãos nas suas, o choro invocando sua presença. Um dia, ela revelou que não tivera a oportunidade de pegá-la no colo. Jamais. Ficava lá, em vigília ao lado do berço, quando muito, sentava em uma poltrona um tanto desaconchegada, ausentava-se nas situações de procedimentos para um café ou hidratar a boca pálida, permitindo que seus olhos esgotados espiassem também outros cenários, sem alarmes, monitores, números e gasometrias.

No entanto, a pequenina não melhorava. Seu aspecto e o quadro se agravavam ao longo dos dias, em verdade. Nenhuma medida surtia qualquer efeito. E face a face com a mãe, não havia como mentir, disfarçar, enganar. Não havia nem muito o que dizer, pois ela sabia.

Sabia da nossa tensão, das intermináveis discussões, do quanto estudamos procurando uma terapêutica diferente, de todos os especialistas que opinaram, do quanto a vida de cada um de nós também estava afetada por aquela história, já que é impossível passar imune numa UTI. Mas ela, a mãe, vistoriava diariamente sua própria força, reconhecia seus limites e diante desse impasse, executava a tarefa de esperar da maneira que suas pernas e seu amor aguentassem: trêmulos, ziguezagueando, às vezes, mas sem ruir.

Não se permite que um filho vá, ponto final. Mas eles partem. Aquele alvorecer foi implacável. Quatro perdas, ou seriam rendições? Quatro famílias sem alento. E a pequena e sua mãe, esgotada de lágrimas, estavam nessa sequência. Não se descreve dor, não se diz “eu sei” porque não há como entender, e a frase surrada de “ela descansou” é dispensável. Tudo é agudo demais para ser pronunciado, até mesmo o nome, quanto mais o indesejado verbo conjugado. Só dá para abraçar, chorar e ficar junto, fazer o que dá pra fazer: esperar.

Todo esse sofrimento, apesar de continuar intitulado dor, trouxe um momento mágico, sem lágrimas, e com uma devoção sem troca, mas mesmo assim um instante de entrega inacabável: após negar e negar, achar que não podia, não seria capaz, a mãe resolveu sentar naquela conhecida poltrona e pegou sua filha no colo, pela primeira vez. E ali ficou um tempo, transbordando-se de amor, sem pressa, num discurso silencioso, em despedida.

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