Antes do horizonte

Não vá ainda, é muito cedo, mal o dia se assentou, nem uma gota de café desceu pela goela, as mãos estão nuas e carregam a poeira da rua, o quarto é oco, e o coração não se equipou.

– Fique mais um pouco.

E como ousa partir, se ela ainda nem chegou?

Tórax se eleva e se retrai, tudo apita, tudo cai, vida se esvai e os minutos se apressam, mas nada de ela chegar. Remédio corre na veia, sem efeito; flui na alma, sem resposta, quando chamada não ouve, não parece estar aqui, mas não para, ainda não para.

– Por favor, por favor, não vá.

São meses de vida, inundados de amores e pesares, cirurgias, infecções múltiplas e a permanência em um leito de UTI desde o primeiro abrir de olhos, desde o primeiro suposto colo que foi adiado, desde a primeira mamada, que só ficou no desejo. A mãe, sempre ao lado, quase não saía, quase não dormia, mas sempre sorria para a filha, para quem se aproximasse, pois ela era dessas pessoas que deambulam espalhando luz.

No tempo que a menina decidiu partir, no entanto, ela precisou sair. Essa história se repete na medicina, o instante em que a guarda está baixa, em que se está desprevenido, em que o sofrimento pode ser menor, em que parece ser mais fácil ouvir no depois do que presenciar o agora. Bobagem. É tudo difícil da maneira que ocorrer, com ou sem companhia.

Todos sabem que é hora, marcadinha no relógio, algumas despedidas não sabem ser adiadas, mas a gente dribla, engana ou finge que engana, é até uma trapaça pessoal, ninguém quer dar permissão para esse tipo de “ir-se”, por mais que esteja na cara.

– Ela chegou?

Não ainda, está a caminho. Quê mais há para fazer? Já foi um tempo, quanto nem quero saber, alguém anotou, mas não me faria desistir ainda, preciso que ela esteja aqui, não é justo…

Até que ela entra. São passos leves até a filha, segundos encurtados em que todos os corações pausam para silenciar a despedida. Beija sua mão, fala baixinho “Pode ir” e sai correndo do quarto, enquanto nossos olhos pousam inertes na cena que nunca mais foi esquecida.

O que se aprende com os dias é que a solidão pode ser um pouquinho menor nesses míseros segundos; que o que não precisa de explicação talvez nem tenha mesmo alguma; que muitos silêncios nos invadem pelos poros e não há nada mais mortificante e, ao mesmo tempo, mais acolhedor do que nada dizer nessa exata hora.

“Acontece que depois do beijo, tudo se clareou, a criança respondeu e decidiu ficar com ela, conosco, para crescer linda, forte, saudável como se não houvesse passado por tantas intempéries…” era o final da história que almejei contar desde o início. Mas mentir não reconforta e encaremos nossos dramas. Todos concordaram que era o fim e nada foi possível enxergar após as lágrimas brotarem explosivas no rosto de cada membro da equipe, mas a hora justa do óbito ninguém proferiu. Em seu lugar, foi enunciada a palavra – adeus – coletivamente e ainda em meio ao silêncio do dia, depois que mãe e filha nos deixaram.

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