Os Devolvidos

No epílogo da tarde, quando a escuridão já começava a delinear o seu enredo, nós acordamos. Os olhos ardiam após dias ininterruptos em que as pálpebras se uniram, findada a despedida; tínhamos os lábios rachados e a boca seca, com sede voraz quase a ocultar os demais sentidos, de tão intensa; odores não sentíamos, orelhas se compungiam pelo não mais ouvido, enquanto algumas dezenas de pernas se arrastavam descoordenadas, com pouca pressa, detendo os passos em uma marcha rasteira, entretanto com um propósito claro: chegar ali, bem ali, a pouco mais de vinte passos, do portão negro do cemitério. Continuar lendo

Antes do horizonte

Não vá ainda, é muito cedo, mal o dia se assentou, nem uma gota de café desceu pela goela, as mãos estão nuas e carregam a poeira da rua, o quarto é oco, e o coração não se equipou.

– Fique mais um pouco.

E como ousa partir, se ela ainda nem chegou?

Tórax se eleva e se retrai, tudo apita, tudo cai, vida se esvai e os minutos se apressam, mas nada de ela chegar. Remédio corre na veia, sem efeito; flui na alma, sem resposta, quando chamada não ouve, não parece estar aqui, mas não para, ainda não para.

– Por favor, por favor, não vá.

São meses de vida, inundados de amores e pesares, cirurgias, infecções múltiplas e a permanência em um leito de UTI desde o primeiro abrir de olhos, desde o primeiro suposto colo que foi adiado, desde a primeira mamada, que só ficou no desejo. A mãe, sempre ao lado, quase não saía, quase não dormia, mas sempre sorria para a filha, para quem se aproximasse, pois ela era dessas pessoas que deambulam espalhando luz.

No tempo que a menina decidiu partir, no entanto, ela precisou sair. Essa história se repete na medicina, o instante em que a guarda está baixa, em que se está desprevenido, em que o sofrimento pode ser menor, em que parece ser mais fácil ouvir no depois do que presenciar o agora. Bobagem. É tudo difícil da maneira que ocorrer, com ou sem companhia.

Todos sabem que é hora, marcadinha no relógio, algumas despedidas não sabem ser adiadas, mas a gente dribla, engana ou finge que engana, é até uma trapaça pessoal, ninguém quer dar permissão para esse tipo de “ir-se”, por mais que esteja na cara.

– Ela chegou?

Não ainda, está a caminho. Quê mais há para fazer? Já foi um tempo, quanto nem quero saber, alguém anotou, mas não me faria desistir ainda, preciso que ela esteja aqui, não é justo…

Até que ela entra. São passos leves até a filha, segundos encurtados em que todos os corações pausam para silenciar a despedida. Beija sua mão, fala baixinho “Pode ir” e sai correndo do quarto, enquanto nossos olhos pousam inertes na cena que nunca mais foi esquecida.

O que se aprende com os dias é que a solidão pode ser um pouquinho menor nesses míseros segundos; que o que não precisa de explicação talvez nem tenha mesmo alguma; que muitos silêncios nos invadem pelos poros e não há nada mais mortificante e, ao mesmo tempo, mais acolhedor do que nada dizer nessa exata hora.

“Acontece que depois do beijo, tudo se clareou, a criança respondeu e decidiu ficar com ela, conosco, para crescer linda, forte, saudável como se não houvesse passado por tantas intempéries…” era o final da história que almejei contar desde o início. Mas mentir não reconforta e encaremos nossos dramas. Todos concordaram que era o fim e nada foi possível enxergar após as lágrimas brotarem explosivas no rosto de cada membro da equipe, mas a hora justa do óbito ninguém proferiu. Em seu lugar, foi enunciada a palavra – adeus – coletivamente e ainda em meio ao silêncio do dia, depois que mãe e filha nos deixaram.

Obrigado por você ser diferente

Agradeço a você por esse tom de pele que possui e que me lembra a todo momento que a beleza é tão mais intensa quanto mais matizes houver.

Agradeço a você pelos olhos rasgados, pequenos, enormes, vastos por tudo que já viveram, heroicos por tudo que ainda pretendem viver, pois eles enxergam passos longínquos.

Agradeço também as roupas que veste, seu estilo que determina sua unicidade e que ninguém precisa seguir ou muitos podem almejar se igualar, sem regras ou críticas, mas o que é externo não te definirá jamais.

Agradeço pela religião que escolheu para si, pelas crenças que guarda com paixão; a sua diferença me faz questionar meus conceitos, a minha missão nesse mundo e, apesar de não mudar minha opção, faz com que eu floresça sementes dentro de mim.

Agradeço a você pelos desenhos que reinam em seu corpo, pelas cicatrizes que carrega em sua alma, por ser velho e por ser novo e pelo fato de cada pedacinho de você ser uma obra de arte em construção, desde que você acredite em si mesmo.

Agradeço a você por saber cantar, estudar, desenhar, jogar, torcer, escrever bem, falar em público, dançar, liderar, por fazer tudo aquilo que não sei e admiro, pois se não me traz o ímpeto de aprendê-lo, ao menos me torna espectador a inebriar-me com seu ofício.

Agradeço a você por ser do outro time, do outro ideal, do outro edifício, de outra cidade, por ultrapassar barreiras e, ao mesmo tempo, ter seus limites muito bem definidos, prolongando-se, mas respeitando o espaço alheio.

Agradeço a você por seu peso, seu tamanho, pelos seus excessos e também suas faltas, aos quais reconhece plenamente e me incitam a reconhecer meus tantos e meus poucos também.

Agradeço a você pelo sorriso farto que ostenta e por, de um momento para o outro, chorar as lágrimas que receio não caberem em meu rosto.

Agradeço a você por ter a cabeça em ordem e também por ter alguns parafusos a menos, mostrando a mim diariamente que há muito mais poesia na desordem do que sonha a nossa medíocre filosofia.

Agradeço a você por você ser homem e também por ser mulher e por poder ser tudo junto e misturado. Agradeço por você sentir prazer sem medo, por transar com quem tiver vontade e por me fazer entender que para se amar é preciso somente permitir-se a isso.

Colo de mãe

“O segredo do amor é maior do que o segredo da morte.”

Oscar Wilde

Ela já era muito grave, desde o nascimento. Por volta de 2 meses de vida, nunca havia saído da UTI. A mãe, ali do lado, quase não desgrudava dela, quase nunca a deixava sem um afago, e em nenhuma circunstância deixou de enxergá-la como o doce bebê com quem sonhara por tanto tempo, apesar do aspecto inchado, muito inchado, de quem já passou por tantas infecções, cirurgia cardíaca e procedimentos variados.

Já fazia tempo que não via os olhos da filha abertos, tampouco o fechar das mãos nas suas, o choro invocando sua presença. Um dia, ela revelou que não tivera a oportunidade de pegá-la no colo. Jamais. Ficava lá, em vigília ao lado do berço, quando muito, sentava em uma poltrona um tanto desaconchegada, ausentava-se nas situações de procedimentos para um café ou hidratar a boca pálida, permitindo que seus olhos esgotados espiassem também outros cenários, sem alarmes, monitores, números e gasometrias.

No entanto, a pequenina não melhorava. Seu aspecto e o quadro se agravavam ao longo dos dias, em verdade. Nenhuma medida surtia qualquer efeito. E face a face com a mãe, não havia como mentir, disfarçar, enganar. Não havia nem muito o que dizer, pois ela sabia.

Sabia da nossa tensão, das intermináveis discussões, do quanto estudamos procurando uma terapêutica diferente, de todos os especialistas que opinaram, do quanto a vida de cada um de nós também estava afetada por aquela história, já que é impossível passar imune numa UTI. Mas ela, a mãe, vistoriava diariamente sua própria força, reconhecia seus limites e diante desse impasse, executava a tarefa de esperar da maneira que suas pernas e seu amor aguentassem: trêmulos, ziguezagueando, às vezes, mas sem ruir.

Não se permite que um filho vá, ponto final. Mas eles partem. Aquele alvorecer foi implacável. Quatro perdas, ou seriam rendições? Quatro famílias sem alento. E a pequena e sua mãe, esgotada de lágrimas, estavam nessa sequência. Não se descreve dor, não se diz “eu sei” porque não há como entender, e a frase surrada de “ela descansou” é dispensável. Tudo é agudo demais para ser pronunciado, até mesmo o nome, quanto mais o indesejado verbo conjugado. Só dá para abraçar, chorar e ficar junto, fazer o que dá pra fazer: esperar.

Todo esse sofrimento, apesar de continuar intitulado dor, trouxe um momento mágico, sem lágrimas, e com uma devoção sem troca, mas mesmo assim um instante de entrega inacabável: após negar e negar, achar que não podia, não seria capaz, a mãe resolveu sentar naquela conhecida poltrona e pegou sua filha no colo, pela primeira vez. E ali ficou um tempo, transbordando-se de amor, sem pressa, num discurso silencioso, em despedida.

Adote uma lua

– Boa noite, Note!

E ele me afrontou dali, em seu modo de espera, enquanto eu divagava se a tela do site não estaria, quem sabe feito magia, toda arranjada, preenchida e pronta para navegar.

Não, não estava. Os espaços em branco me intimavam. Era meu esse encargo, fui eu mesma que decretei que essa noite me doaria a algum estranho. E, para começar, era hora de abarrotar cada janela com as lacunas de minha tediosa existência.

“Então seguirei meu coração até o fim…” Continuar lendo

Uma dose de empatia, por favor

Há fundamentos variados para se sentir triste e formas grosseiramente distintas de expressar essa emoção. E não é o motivo da tristeza que a valida, que traz sublimidade a ela, gerando maior valor. Não é preciso se sentir desolado por grandes tragédias, nem por questões universais; os pequenos dramas têm seu direito em raspar a consciência e provocar feridas. Não é imperioso sentir a tristeza que todos estiverem compartilhando em dado momento ou ainda sentir-se mal quando é dessa maneira que todos esperam que você se posicione. Continuar lendo

Eu não tenho que nada

“Você tem que me fazer um juramento
De só ter um pensamento
Ser só minha até morrer.”
 (Grande Vinícius)
 

Minha namorada é uma canção da música popular brasileira que me toca profundamente: a melodia delicada, a voz de Vinícius cortejando meus ouvidos, a súplica por amor e presença… isso é inigualável! Entretanto, peço perdão ao poetinha, com todo o respeito que dedico aos seus colóquios e rimas…mas EU NÃO TENHO QUE NADA! Continuar lendo

Definições

“A poesia não se entrega a quem a define.”

(Mario Quintana)

 

Defina. Era esse seu imperativo constante.

Antes de se expor, com o intuito de saber exatamente de que era feito o piso onde acabara de sopear, ela lançava o pedido da definição.

– Eu te amo – dizia alguém próximo.

Defina ‘amor’.

– Fiquei um pouco chateado com você.

Defina ‘chateado’.

– Não sei se gosto desses planos.

Defina ‘não saber’.

– Você tem que ler esse livro. Ele é impressionante!

Defina ‘impressionante’.

Era serviçal do definir. Às vezes recebia a explicação esperada e se contentava até a próxima brecha, mas costume era ignorarem, mudarem de assunto, encararem seus modos maçantes como um convite a deixá-la sozinha.

Mas era interesse genuíno por quem estivesse ao seu redor. Pedia que descrevessem suas metas, sonhos, vontades; que definissem suas histórias em algumas frases, seus medos, que descrevessem a si mesmos. E quem não gosta de falar de si, quem não quer dividir seus sonhos, quem não precisa contar suas histórias? E ela os ouviria.

Até que se apaixonou. E se fixou naquela vida ao lado da sua, que parecia interminável e parte de si; que parecia sua e, ao mesmo tempo, proclamava ser conquistada todos os dias. E esqueceu de pensar na interpretação das coisas, pois começou a viver o significado das coisas.

Naquele final de tarde, ela foi, no entanto, testada:

– Descreva o que você enxerga em meus olhos – ele pediu, com uma pitada de zombaria.

Ele pedia da forma mais escancarada que ela retratasse o indefinível, como quem imortaliza um momento que não tem e nem terá nome, instante em que se perde e se esquece de retornar.

Quero seus olhos em espera, despidos e abertos diante dos meus, quero seu olhar inteiro em mim, rasgando a pele por onde passa…quero seus olhos me empurrando com seu ímpeto inegável e estarei disposta a mergulhar nesse abismo…em queda livre.

A poesia súbita não surgiu. Riu da tentativa de improviso, mas não progrediu. Ficou a olhar e olhar até o sol se esconder da sua janela e a brisa que a noite trouxe alarmar a hora da separação.

Não articulou seu lirismo, nem pela boca, nem em papel, pois lábios se colaram e outras definições silenciosas se instituíram. Entre um beijo e outro, murmúrios acanhados se ouviram.

– Ah, eu não sei, eu não sei…